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ENTORNOS

 

Para que a imagem tivesse a sua máxima eficiência ilusória, os mestres da pintura renascentista ocultavam tudo aquilo que pudesse chamar a atenção para a materialidade da tela. Uma camada de verniz aplicada sobre a pintura dava o toque final que fazia com que os vestígios dos rastros do pincel, a fisicalidade da pasta de tinta e a urdidura da tela fossem minimizados, favorecendo o efeito de trompe-l'oeil. O aparato fotográfico, construído sobre a lógica visual da perspectiva renascentista, herdou não somente seu sistema monocular e sua estrutura de ponto de fuga, mas também outros códigos de representação menos evidentes. A suavidade do papel fotográfico e o verniz aplicado sobre este são, eles também, testemunhos, na fotografia, dos códigos da pintura.

Simone Cupello usa a fotografia como matéria-prima, e, neste sentido, o termo matéria ganha relevância. Sua abordagem inverte a lógica renascentista desconstruindo a imagem fotográfica em favor de sua evidência material, sempre renegada pela fotografia convencional. A imagem cede o seu protagonismo para a fisicalidade do suporte fotográfico, que ganha corpo escultórico e ocupa o espaço. Empilhadas, prensadas, coladas umas sobre as outras, formando placas e pedras, cubos e tiras, as fotografias impõem sua materialidade ao espaço. Raramente temos acesso às imagens, cobertas nas pilhas, coladas umas nas outras, nas placas e pedras, raspadas, escavadas, destituídas de seu caráter referencial. As fotografias tornam-se presenças físicas, e não mais imagens espectrais indicativas de um instante já ocorrido. A exígua borda lateral de papel ganha primazia em relação ao plano envernizado com emulsão fotossensível. O acúmulo de folhas de papel fotográfico, depositadas umas sobre as outras, vai se encorpando em pilhas, formando pequenas torres de papel. Imagens ocultas e inacessíveis se encontram entremeadas, como um fóssil ainda soterrado entre os extratos de terrenos sedimentares. A alusão mnemônica das imagens a um instante passado dá lugar a materialidade do papel fotográfico, formando camadas estratificadas de tempo sobre tempo, tal qual as camadas geológicas sedimentadas registram a passagem das eras.

O David, de Michelangelo, é a imagem-exceção que confirma a regra. Desgastado como ícone turístico, sua imagem perde qualquer significância enquanto obra de arte, torna-se um ponto cego, apreendido pelo olhar mecânico, em um gesto repetido, quase um ato reflexo das diversas câmeras fotográficas, como se esses aparatos tivessem uma autonomia em relação àqueles que as portam. As diversas imagens recolhidas e dispostas lado a lado registram a impessoalidade e a nulidade da imagem. O vídeo com a lente coberta, intitulado “Coberto” (2016), é o outro lado da evidenciação dessa cegueira. A escultura, propriamente dita, desparece, ficando apenas seus entornos, os comentários que circundam a obra.

Michelangelo reaparece na equação neoplatônica de seu processo escultórico: “Tu vedi un blocco, pensa all'immagine: l'immagine è dentro basta soltanto spogliarla.” (Você vê um bloco, pensa em uma imagem: a imagem está dentro, basta despi-la). Simone inverte a equação em “Sorrisos em caixa (Yeda, Franklin e seus amigos)” (2017). O bloco formado pela pilha de fotografias é desbastado em forma de um seixo, signo inequívoco da matéria. Ela parte da pilha de fotografias, a fonte das imagens, para chegar à fisicalidade bruta da pedra, em percurso inverso ao do mestre italiano.

Jorge Sayão, março de 2017

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